"Fugimos do abismo da vida, e fugimos da vida - embora tal seja uma autentica estupidez. Se fugimos da vida, caminhamos para o abismo; se fugimos do abismo, abraçamos o calor frio da vida. E talvez porque somos humanos, voltamos novamente a perder o comboio, e novamente, e novamente - e assim continuamos, e assim caímos, e assim caem connosco. Perdemos quem amamos, perdemos quem odiamos [ódio este que somente demonstra que tais pessoas fazem parte do nosso espelho de vida].
Perdemo-nos - oh, como o comboio já lá vai!" - J. A.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Cap. viii

E, no final de contas, somos só humanos. Esse pensamento ecoava-me na cabeça, ao levantar-me da mesa de café onde estava, deixando para trás mais dinheiro (tinha a certeza) do que aquele que teria sido necessário para uma garrafa de água. Mas isso, no fundo, não me importava; preocupava-me sim com a queda do paradigma fundamental da minha vida, com o final abrupto do pensamento lógico no qual me apoiava onde 2+2 já não eram quatro pois alguma variável mais malandreca me houvera pregado uma partida.
Estiquei as pernas contra o pavimento e esbocei um balanço com uma e com outra, alternadamente, até encetar um passo certo sobre os paralelos molhados. E andei em frente, em frente (embora às voltas na minha cabeça) e questionei-me e voltei a questionar-me e nunca cheguei a conclusões para além das que já tinha; e é em momentos assim que os meus medos de criança, que os fantasmas que sempre me acompanharam a vida e o espírito decidem ressurgir. E vejo-me a braços, sem forma de me proteger, com o meu receio do desconhecido, com um medo não de morrer mas do que viria a seguir. A minha cabeça estava a mil e a realidade assentava em mim como uma laje de toneladas a caminho do solo e tu à espera em casa. Mas eu sempre tivera medo, sempre tivera medo e continuo a tê-lo e talvez esse medo seja ridículo em si mesmo ou mais ridículo seja eu em tê-lo; será que seria um bom marido? E se qualquer dia me desse um vaipe esquisito e eu te magoasse, física ou psicologicamente, para além do ponto em que estivesse nas minhas mãos solucionar? Eu amo-te mas e se este amor não passa de cinismo? Não estaria então a fazer-te mal intencionalmente ainda que subconscientemente, vendo-te a sofrer a minhas mãos e sabendo que nada podia fazer para além do nada que já tinha feito? E se o meu amor te matasse, se o teu amor me matasse e se o amarmo-nos loucamente ferisse toda a gente à nossa volta? E seria eu capaz de te amar até ao fim dos meus ou dos teus dias, sem nunca apagar a vela da fidelidade que sempre te prometi, sem baixar o estandarte de lealdade que sempre sustive contra o vento? Sentei-me num degrau de pedra, reentrância de um prédio nesta rua de paralelos, mesmo ao pé do metro, onde o cheiro de chocolate chega até mim. Encostei a cabeça às mãos e suspirei.
E será que o meu amor chega para ti? Será que, ao fim de tanto tempo, o meu amor ainda chega para te satisfazer até à eternidade? Para te aquecer nos dias frios com um abraço quente, para te afastar os cabelos molhados da cara e beijar-te num qualquer pôr-do-sol numa qualquer praia, para nos manter juntos, orbitando em torno um do outro numa cópia de um universo imperfeito embora complementar que nem nós percebíamos bem como funcionava? Sacudi e deitei fora uma lágrima, que ajudou a molhar o caminho. Levantei-me e fui para o metro, como maneira de fugir à água fria que entretanto tinha começado a cair violentamente do céu cinzento-escuro. Mergulhei fundo nos meus pensamentos para conseguir nadar até à superfície da consciência inabalada, cúpula onde nada acontece e a erva verde de um prado nem se agita e ondula à suave brisa, e ergo-me até lá até conseguir pôr a repousar o meu homem do leme da consciência sob a sombra de uma qualquer árvore que por lá se erga e quando chego a casa, com o sobretudo completamente encharcado e a cara lavada pela chuva que me caía em bátegas na rua no caminho de casa, abraças-me fortemente e beijas-me e dizes que estavas preocupadas com o eu nunca mais chegar; e eu, afastando-me a minha cara da tua, sorrio até quase rasgar a face e digo-te que não tinhas nada com que te preocupar e, nesse momento, todas as perguntas e dilemas e questões e medos na minha cabeça se encolhem e se afundam na água tormentosa dos meus pensamentos porque nem um deles me consegue abalar se estou junto a ti e te posso amar. E foi nesse momento, com um simples cruzar da soleira da porta, que tudo fez sentido para mim.