"Fugimos do abismo da vida, e fugimos da vida - embora tal seja uma autentica estupidez. Se fugimos da vida, caminhamos para o abismo; se fugimos do abismo, abraçamos o calor frio da vida. E talvez porque somos humanos, voltamos novamente a perder o comboio, e novamente, e novamente - e assim continuamos, e assim caímos, e assim caem connosco. Perdemos quem amamos, perdemos quem odiamos [ódio este que somente demonstra que tais pessoas fazem parte do nosso espelho de vida].
Perdemo-nos - oh, como o comboio já lá vai!" - J. A.

domingo, 14 de novembro de 2010

Bairro Alto

        A chuva cai, forte, pelo Chiado abaixo, pelo Chiado acima. Subo-o com a mesma vontade que desço as escadas ao sair de casa todos os dias e ao passar pela Brasileira, e ao acenar ao Pessoa, sinto-me num mundo estranho, adulto e adulterado e nem por isto mais ou menos esquisito. Não me reconheço na multidão de lémures até porque me não identifico com eles e o vir para aqui sozinho ao sábado à noite não foi boa ideia, de certeza. À minha volta toda a gente igual, os mesmos rostos, as mesmas roupas, as mesmas conversas processadas, já digeridas, ruminadas e cuspidas por alguém para outros as aproveitarem e todo o degredo do Bairro Alto que tanto me fascina como me repulsa. E passo por ruazinhas e travessas e vielas e o raio que o parta e a cada intersecção já sei o que esperar pois nunca muda; pessoas encostadas a paredes a sugarem as faces uns aos outros, cigarros e charros e merdas do género segurados todos da mesma forma, só porque é fixe, só porque fica bem e garrafas pelo chão e copos na mão e pessoas bêbedas e inconscientes e, muitas vezes, já inconscientes antes de bêbedas a confundir-se com o lixo e o mijo das ruas, nas ruas. O cheiro acre a ruína que se evola de cada sarjeta, de cada paralelo, de cada boca que por ali anda e o monocromatismo de um mundo multicolor de roupas e cinzento de moral. E eu pergunto-me se encaixo ali e chego à conclusão que não, que muito provavelmente não; serei eu ainda do tempo do Passeio Público ou será que esta gente é que está numa fase de Roma decadente, muito à frente num tempo que não consigo (nem quero) divisar, presos a um passado que há muito devia ter sido obliterado? Não sei. Só sei que, se eu fosse José Régio e isto fosse um Cântico Negro, terminaria este…texto? Nota? Coisa? Com um “Não sei para onde vou, sei que não vou por aí”.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Cap. viii

E, no final de contas, somos só humanos. Esse pensamento ecoava-me na cabeça, ao levantar-me da mesa de café onde estava, deixando para trás mais dinheiro (tinha a certeza) do que aquele que teria sido necessário para uma garrafa de água. Mas isso, no fundo, não me importava; preocupava-me sim com a queda do paradigma fundamental da minha vida, com o final abrupto do pensamento lógico no qual me apoiava onde 2+2 já não eram quatro pois alguma variável mais malandreca me houvera pregado uma partida.
Estiquei as pernas contra o pavimento e esbocei um balanço com uma e com outra, alternadamente, até encetar um passo certo sobre os paralelos molhados. E andei em frente, em frente (embora às voltas na minha cabeça) e questionei-me e voltei a questionar-me e nunca cheguei a conclusões para além das que já tinha; e é em momentos assim que os meus medos de criança, que os fantasmas que sempre me acompanharam a vida e o espírito decidem ressurgir. E vejo-me a braços, sem forma de me proteger, com o meu receio do desconhecido, com um medo não de morrer mas do que viria a seguir. A minha cabeça estava a mil e a realidade assentava em mim como uma laje de toneladas a caminho do solo e tu à espera em casa. Mas eu sempre tivera medo, sempre tivera medo e continuo a tê-lo e talvez esse medo seja ridículo em si mesmo ou mais ridículo seja eu em tê-lo; será que seria um bom marido? E se qualquer dia me desse um vaipe esquisito e eu te magoasse, física ou psicologicamente, para além do ponto em que estivesse nas minhas mãos solucionar? Eu amo-te mas e se este amor não passa de cinismo? Não estaria então a fazer-te mal intencionalmente ainda que subconscientemente, vendo-te a sofrer a minhas mãos e sabendo que nada podia fazer para além do nada que já tinha feito? E se o meu amor te matasse, se o teu amor me matasse e se o amarmo-nos loucamente ferisse toda a gente à nossa volta? E seria eu capaz de te amar até ao fim dos meus ou dos teus dias, sem nunca apagar a vela da fidelidade que sempre te prometi, sem baixar o estandarte de lealdade que sempre sustive contra o vento? Sentei-me num degrau de pedra, reentrância de um prédio nesta rua de paralelos, mesmo ao pé do metro, onde o cheiro de chocolate chega até mim. Encostei a cabeça às mãos e suspirei.
E será que o meu amor chega para ti? Será que, ao fim de tanto tempo, o meu amor ainda chega para te satisfazer até à eternidade? Para te aquecer nos dias frios com um abraço quente, para te afastar os cabelos molhados da cara e beijar-te num qualquer pôr-do-sol numa qualquer praia, para nos manter juntos, orbitando em torno um do outro numa cópia de um universo imperfeito embora complementar que nem nós percebíamos bem como funcionava? Sacudi e deitei fora uma lágrima, que ajudou a molhar o caminho. Levantei-me e fui para o metro, como maneira de fugir à água fria que entretanto tinha começado a cair violentamente do céu cinzento-escuro. Mergulhei fundo nos meus pensamentos para conseguir nadar até à superfície da consciência inabalada, cúpula onde nada acontece e a erva verde de um prado nem se agita e ondula à suave brisa, e ergo-me até lá até conseguir pôr a repousar o meu homem do leme da consciência sob a sombra de uma qualquer árvore que por lá se erga e quando chego a casa, com o sobretudo completamente encharcado e a cara lavada pela chuva que me caía em bátegas na rua no caminho de casa, abraças-me fortemente e beijas-me e dizes que estavas preocupadas com o eu nunca mais chegar; e eu, afastando-me a minha cara da tua, sorrio até quase rasgar a face e digo-te que não tinhas nada com que te preocupar e, nesse momento, todas as perguntas e dilemas e questões e medos na minha cabeça se encolhem e se afundam na água tormentosa dos meus pensamentos porque nem um deles me consegue abalar se estou junto a ti e te posso amar. E foi nesse momento, com um simples cruzar da soleira da porta, que tudo fez sentido para mim.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

E receio?

Apetece-me ler,
Apetece-me escrever,
Apetece-me imenso não ter nada para fazer;
Mas não posso,
Não o faço,
Nem me poderia dar ao luxo de qualquer um querer,
Mais do que desejo passageiro,
Mais do que fome morta que escava círculos no estômago
De ser arrastada às voltas por esse salão nobre desfigurado.
Chamam-lhe temor a essa sensação e eu nunca percebi o porquê;
De que me serve ter temor
Ou medo
Ou pânico
E senti-los a corroer-me o corpo por dentro
Como se o meu corpo fosse um copo de precipitação,
Ou até um Erlenmeyer,
Donde escorria gota após gota para a dor ser maior
Ácido clorídrico nas minhas veias de sangue não-azul?
Mas tenho medo, como todos temos e tivemos e havemos de ter,
Como teve um qualquer rei de um qualquer país,
Como o teve um qualquer rei do seu nariz,
Do medo.
Tenho medo do medo,
Mas nem é o próprio medo o que me dá mais medo;
Não, mais medo que o medo em si,
Só mesmo o medo do ócio,
Porque o ócio para mim é como um aluvião de electricidade
(e os ossos dos esqueletos a dançarem violentamente contra os armários
A escangalharem-se a cada embate,
Esperando que um qualquer cangalheiro,
Possivelmente também rei do seu nariz e seu umbigo,
Os volte a encangalhar para mais uma possível dança um dia mais tarde,
Que os esqueletos nunca morrem,
Embora ardam).
Sim, temo o ócio que é o levantar dos esqueletos,
Que em formações e batalhões de pares a valsar
Se instalam nos salões mal ladrilhados da minha cabeça;
Temo essa nobreza falsa,
Composta apenas das memórias das coisas que já passaram.
Temo essa memória,
Esse ter que reviver ainda mais próximo
Que se as más memórias se vivem a meio do palco,
As que dançam valsas pela cabeça afora deslizam à boca de cena.

Daí temer o ócio;
Sem tempo livre
Ou nada para fazer,
Não teria multidões a saracotear-se na minha cabeça,
Numa dança que nem sequer sei dançar.
Sim, temo o ócio
E embora paradoxalmente o ame ao mesmo tempo,
Prefiro evitá-lo para não me perder;
Que eu não sei valsar,
E aprender com esqueletos não deverá ser a melhor ideia.

domingo, 13 de junho de 2010

Sótão

Não sei por que escrevo.
Não sei,
Simplesmente não sei.
Assim sou eu, nunca sei nada.
Exorcismo, talvez?
Mais não seja uma limpeza de alma.
(ahahah alma)

Pego na guitarra pelo braço e rebento-a contra a parede,
Dou saltos, frenético, pelo sótão fora, enquanto mando a televisão ao chão
E vírgulas às paredes!
Mando os livros ao ar,
Parto CDs ao meio,
E as folhas que flutuam à minha volta,
Antes em pilhas de papelada,
São fragmentos de memórias,
Agora dolorosas, do meio ambiente.
(e dói-me a alma, como me doem todas as coisas,
Como me doem as mãos das cordas que se rebentaram nelas,
Como me doem os pés de tanto andar!)

E saber? Não, não quero saber, nem ninguém quer saber,
Nem devia.
E dum monitor que solta fumo saem ainda pontos de luz a formar imagens indistintas
E deixo-me cair na carpete
E ligo o ferro
E grito ao encostá-lo à pele

(e vou queimando o corpo, centímetro quadrado a centímetro quadrado,
Como desejava pegar fogo ao que penso e ao que sinto e ao que sou e à alma,
Ao raio da alma que nem sequer serve para alguma coisa!)

E ao longe os tambores rufam, fora de ritmo,
E as cornetas acompanham-nos com som roufenho,
E as flautas mal tocadas ferem-me os ouvidos
Como as guitarras cortam punhos!

Tenho as mãos em sangue e dou murros ao contraplacado que se desfaz,
Sentindo as pequenas lascas de madeira a penetrar mais fundo a cada soco,
E toco o ritmo dos tambores em lascas a voar e pedaços de secretária a cair,
E pinto o céu
(enfim, o ar do sótão)
Com gotas, rios de vermelho escuro ou vivo
(não sei se é sangue venoso ou não)
Que nem fluem no ar gelado,
E eu sem camisa.

Ah, quem me dera fugir pelas escadas abaixo enquanto o canapé corre atrás de mim!
Quem me dera tentar fugir enquanto os cabos que se espalham pelo chão
Se elevam para me estrangular!
E quem me dera fugir da música que se ouve ao longe!
Mas não consigo fugir e mais um exército de gente em pólo me persegue
Pelas ruas do meu sótão que nem sequer tem ruas.

E então, para fugir mais depressa, ponho-me a andar com as palmas das mãos no chão,
A fazer o pino,
E as minhas pernas parecem mastros,
E as minhas calças de palhaço,
Meio laranjas brilhantes, meio brancas com bolinhas encarnadas,
São as velas sem cruz de Cristo de uma caravela que se afundaria na terra,
Sem sequer sair do estaleiro.
Vejo o mundo ao contrário e as formigas a andar em carreirinha
(devem ter sentido o cheiro de alguma coisa)
E eis que noto que a alma me escorre pelas orelhas até ao tecto;
Ou isso ou estou a alucinar com o sangue no cérebro.

Pouso os pés no tecto novamente,
Espera, agora chão,
E agarro num x-acto,
E aproximo-o da ponta dos dedos,
Cortando um papel em cima da mesa e admirando
O espaço e o pó da madeira e de verniz que vai surgindo da ferida exposta à erosão.

E surgem mil cavalos do espelho,
Velozes como tartarugas de pernas para o ar,
Que se enlaçam e entrelaçam no meio do sótão
E eu caí para a carpete, sem força por pensar.

Desapareceram os cavalos mas os fantasmas dançam tangos sobre o meu corpo
E as lágrimas correm-me pela face
E nem a minha mão, arrefecida pelo toque de outra,
Me traz o conforto de outros tempos.
(talvez por saber que o toque é de um fantasma
E que os fantasmas não nos dão a felicidade que nós queremos)
E agora estou com medo de morrer afogado
Numa poça da minha própria alma.

Mas eu peguei fogo à carpete numa pira funerária,
Como peguei fogo às pontes sem intenção,
E enquanto sinto o calor a aquecer-me o corpo,
Como os cobertores e os lençóis da cama onde há tanto me deitei,
Desejo que o fantasma fique para sempre;
Mas este não fica,
(nem quereria ficar como em vida não quis)
E é então que percebo
Que a banda sonora de amar
É uma marcha fúnebre.

Exorcismo? Talvez.
Mas a minha alma está espalhada pelo chão do sótão,
Como já está há muito tempo, embora em menores quantidades,
E tenho de ir buscar uma esfregona e um balde para a limpar antes que seque.

(É que não há pior que limpar bocados de alma ressequidos.)

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Verão


            Desci a mão num gesto lento, suave. Fi-la passar, roçar sobre a superfície; fi-la prender e largar a areia, ainda quente, da praia. O sol já tinha começado a pôr-se e ao longe via-se a sua grande bola avermelhada raiando já o céu escuro por cima. O mar calmo em nada contrastava com o fim daquele dia; calmo, pacífico, como a fraca brisa quente que soprava. O som do mar era uma melodia extraordinária, um pano de fundo que tocava como instrumento numa orquestra; lá atrás as árvores restolhavam suavemente à brisa; lá à frente as pequenas ondas que, de tão pequenas, nem sei se se podiam chamar ondas, enrolavam-se e rebentavam num rio de espuma. Acima de nós algumas aves também se faziam ouvir e tudo aquilo, em conjunto, era suficiente para que ouvíssemos, em silêncio e paz, aquilo que a natureza nos dizia. A areia por baixo de nós ainda nos aquecia; sentia o seu calor através da minha túnica e nos pés descalços. Sentia o calor da areia na minha mão quando a deslizava sobre ela. E sentia o calor da areia a elevar-me a alma, como a companhia. Estavas sentada e olhavas o mar, com os braços a enrolar-se à volta dos joelhos. Gostava de te ver assim, com a brisa a fazer-te balançar os cabelos, alguns louros, outros quase, e a ainda luz do sol a balançar-te nos olhos, como reflexo de ti. Gostava de te olhar assim, com esse ar tranquilo e sossegado de quem sabe que os pores-do-sol, tal como os dias de verão, eram para descansar e abstrair-se da banalidade da rotina de todos os dias. Ergui a cabeça e sentei-me a teu lado. Pus o braço à volta dos teus ombros. Olhaste para mim com um olhar de quem se pergunta o que faria a seguir, com aquele brilho que se nota, naquele olhar que conseguia dizer tudo o que queria sem margem para dúvidas. Inclinei a cara e beijei-te a testa; e fiquei com o braço sobre o teu ombro a ver os últimos fôlegos do sol que caía para a noite. Não sei quanto tempo ficámos assim; não deve ter sido muito, o sol não demora muito a pôr-se. Mas a lua e as estrelas já brilhavam no céu e se reflectiam sobre o preto da minha guitarra quando comecei a tocar para ti. Músicas calmas, acordes lentos, notas soltas e dedilhados suaves que se erguiam na noite sozinhos e ecoavam, como magia, enrolando-se no marulhar do mar e no restolhar das folhas, criando uma música sempre nova, sempre diferente.
            - Está a ficar tarde e eles já se devem estar a perguntar onde andamos…é melhor irmos ter com eles para o jantar…nem sei que horas são. – disseste.
            - Tens razão, é melhor irmos é…mas não apetece nada…- e ri-me.
            Ergueste-te. Esticaste os braços e agarraste-me as mãos e começaste a puxar-me.
            - Vá, não sejas preguiçoso, anda…vá, temos de ir…
            - Hum…temos mesmo?
            - Temos, vá…
            - Pronto, vá, tens razão…Vamos lá então.
Começámos a andar pela praia em direcção ao caminho que nos levaria à casa sobre a falésia.

domingo, 23 de maio de 2010

Prólogo

M…
As suas mãos tremiam, sustendo entre os dedos o pesado volume castanho. Uma lágrima surgia já no canto do olho e ele levantava a mão esquerda para a limpar, como sempre o tivera feito; queria varrer dele todas as emoções. Perguntava-se o porquê de só sentir dor, uma dor agonizante, uma dor que trespassava todas as suas camadas, uma dor que o penetrava até ao tutano…Uma dor. Várias dores diferentes juntas numa, supunha ele, e que era tudo o que existia no meio daquele vazio emocional. À volta não havia nada; só talvez saudade, essa última fronteira. Mas ele agarrou com mais força o álbum, respirou fundo e flectiu os joelhos; afundou-se no cadeirão de pele e pousou os braços sobre os encostos e o livro sobre as pernas. Olhou-o. Já não o via há tanto tempo, já há muito que não tinha coragem sequer para o retirar do baú que tinha trazido com ele. Não tinha pó, não estava sujo, não tinha as pontas dobradas; o nó da fita de cabedal que o prendia e o impedia de abrir ainda era o nó que ele tinha feito, há já tanto tempo…era como se o tempo nunca tivesse passado por aquele objecto. O mesmo tempo que ele a tanto custo tentara agarrar. Aproximou os dedos trémulos da lombada e percorreu-a, até chegar ao fio de cabedal; seguiu-a até ao nó. Desatou-o e puxou a fita com força, arrancando-a até ela se largar, quase a voar, da capa do álbum. Respirou fundo uma, duas, três vezes. Suspendeu a mão sobre a capa. Arqueou os dedos para agarrar a parte que sobressaía em relação ao papel. Respirou fundo. Abriu o volume. E das suas páginas sorria-lhe M.
Desta vez não tentou suster as lágrimas; deixou-as cair, uma a uma, sobre o papel, cada vez mais manchado em pequenos círculos. Ia virando as páginas do volume, num quase frenesim, até chegar ao seu fim e, assim que o fazia, voltava ao início. À medida que ia vendo uma e outra e ainda outra vez as fotografias de onde M lhe sorria, umas vezes de branco, outras nos seus vestidos de gala, umas vezes no apartamento que tinham, outras vezes nos países que visitavam, ele ia tremendo cada vez mais, agitando-se cada vez mais, chorando cada vez mais, murmurando “M”s e “não”s cada vez mais próximos uns dos outros até que parou. Simplesmente parou. Deslizou o indicador sobre a face fotografada de M, sorvendo dos recônditos da memória a lembrança desse dia tão, tão distante…Parou novamente. Olhou-a nos olhos estáticos e, ainda assim, brilhantes. Respirou fundo, limpou as lágrimas. Cerrou os punhos. Com um esticão do braço direito projectou o álbum de fotografias para longe na sala, para ao pé da porta. Levantou-se. Varreu os vasos e as molduras despidas de flores e de imagens de cima da mesinha baixa da sala até os ver partirem-se contra a parede. Pontapeou a mesa para ela se virar, pôs o cadeirão em que estava sentado de pernas para o ar. Deitou ao chão os quadros que M. tinha pintado, mandou para o lixo as fotografias que ele tirara e que pendurara num painel da sala. Foi até ao quarto e abriu o cofre; de lá tirou o contrato que rasgou raivosamente em pedaços. Correu até à varanda e entre murmúrios ininteligíveis soltou os pedaços do contrato ao vento; pousou as mãos sobre a borda da varanda. Sentia o vento passar-lhe entre os cabelos curtos, vento que também lhe levava as lágrimas para um só lado da sua cara. Olhou para o abismo que se abria para lá da protecção do muro que circundava a varanda. Baixou mais ainda a cabeça e murmurou um outro “M” e um “Talvez morrer não seja assim tão mau”.
Largou as mãos do muro.

Ergueu os calcanhares, até ficar em bicos dos pés.

Respirou fundo.

Suspirou um “Talvez não”.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Simplicidade.


Rodo, e volto a rodar, e giro novamente sobre o seu eixo, a pequena peça dourada na minha mão. Afago-a, com o carinho que só um pai demonstra ao seu filho, e esta peça é mais que um filho, é a minha concepção de perfeição materializada num simples objecto que jamais adornará algo ou alguém. É algo que de tão simples ganha o seu quê de complexidade, analisada e raciocinada, revista e descrita por imensos, sem nunca, no entanto, encontrarem uma explicação satisfatória para o que ela irradia. E, se ela ainda agora está por terminar, então quando acabada não terá rival. Arranco das entranhas de uma gaveta, compartimento secreto, desta escrivaninha construída de propósito, como prenúncio, do reino que estava então reservado para mim, uma bolsa. Sinto o seu veludo azul escorrer-me, leve, macio, por entre os dedos como se de o mar se tratasse, arranhando-me com as ondas dos seus intrincados bordados a fio de ouro. Se eu não soubesse melhor que eu próprio diria que eu era um nobre. Mas como eu sei mais que eu (se é que tal paradoxo é possível ou sequer concebível) asseguro-me, acalmando-me, que não sou um nobre e que, aliás, a monarquia já há muito acabou na minha república. Mas eu sou anacrónico e o que se passa na rua é para lá do meu principado; aqui, onde tudo o que me importa acontece, sou alquimista, príncipe e juiz, rei absolutista a quem não se questiona nada do que se diz. Mas adiante, não posso perder-me em devaneios ilusórios de poder e força, já que, pousado no seu pedestal de brocado vermelho, está a minha tentativa de materializar, como através de uma qualquer pedra filosofal, a perfeição em si, no estado puro. Faço abrir o pequeno saco e sinto as lágrimas do seu interior; como a chuva que cai lá fora refulge ao brilhar do sol, ao virar a pequena bolsa, produzo uma pequena chuva de minha criação e as lágrimas caem sobre a mesa, todos eles pequenos diamantes resplandecendo à luz das velas, com o seu interior em fogo, tremendo com uma ou outra aragem.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Poltrona

Estou hoje sentado,
Na dor da convalescença.
Partido e escaqueirado na poltrona,
Sabendo já o que me espera:
A cor dos dias sem fim,
Entre fôlegos de azul-escuro
E de dourado,
Que escorrem, em fiapos,
Por entre os quadrados das janelas.
Dói-me o corpo,
Quebrado e quebradiço,
E a alma por ter memória;
Singram-me imagens pela cabeça,
Ecos que flutuam na sala,
Que vencem o som da voz e da televisão
E os gestos das mãos,
Feitos em vão.
Dói-me tudo, e as mãos
Largadas ao acaso sobre as calças
Ardem-me de uma dor que queima…
E antes queimasse,
Tudo à minha volta!
Mas deixo cair a cabeça para trás
E olho a janela de lado;
Afundo-me no quase-claro da sala
E descubro que, afinal,
O silêncio vazio da grande casa,
Não me faz jus à solidão.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Queria viver tudo numa noite.


Queria viver tudo numa noite.
Queria correr, saltar,
Fugir e voar,
Queria ver-te e te beijar,
Queria deslizar na neve,
E dançar e me embebedar,
Queria jantar e viajar,
E flutuar…
Queria descer um rio numa canoa,
E uma montanha escalar,
Queria mandar-me da ponte,
Com uma corda a me segurar.
Queria levar o carro e passear,
Queria pegar num martelo e partir os telemóveis;
Queria quebrar as correntes,
E mandar uma parede abaixo.
E queria patinar,
E mergulhar
E nadar,
E escrever
E tanto, tanto mais…

Queria viver tudo numa noite,
E, na manhã seguinte, tudo em mim fazer parar.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Preguiça

Tenho preguiça de estar vivo...
Preguiça, preguiça...
Iça?
Iço-me para a cama e deixo-me lá ficar,
De barriga para o ar,
Sorvendo a calma da preguiça no ar...
Tenho preguiça de viver
E de ver passar os dias
nesta lentidão de morto-vivo...
Não há altos, não há baixos,
Apenas e só a recta infinita por entre os prados...
Se preferia estar morto nestes dias
(ou não pensar, se é que isso não é a mesma coisa)
Não sei;
Não me apetecem raciocínios.
Só me apetece espreguiçar...

sábado, 10 de abril de 2010

Crac.


            Crac. Crac. Crac. Crac. O frio tinha gelado a erva que estalava enquanto se partia debaixo dos meus pés. O vento agitava violentamente as copas das árvores, que forçavam o tronco a balouçar para a frente e para trás. Pergunto-me quanto tempo aguentarão metade destas árvores, com este vento. Mas esta pergunta é parva porque não estou, de facto, interessado em saber a resposta. Crac, crac, crac, continuo a andar, com as mãos completamente perdidas nos bolsos do sobretudo preto que de nada me servia contra o frio glaciar. Não sei porque motivo me apeteceu vir andar neste dia (ultimamente nem ligo muito aos motivos; desde que deixei de ter motivo para ter motivos que me rendo facilmente ao impulso) mas neste dia esse desejo foi forte. E assim larguei o calor da lareira e me pus a andar pelo campo desolado e solitário. Crac, crac, crac. Não havia um cantar de pássaros, nem gritos ao longe. Não havia nada para além de silêncio. Crac, crac, crac, CRAAAC. Sinto algo ceder sob os meus pés. Sinto algo a ressoar. Um eco. Madeira a cair. Madeira podre a rachar completamente. Eu a cair. Eu a cair. O assobio forte aos ouvidos. A pouca luz a diminuir ainda mais. Um baque. Sinto algo quente a escorrer-me nas pernas. Dor. Dor. Dor. Dor. Dooor. Doem-me os ossos. Sinto-os partidos. Dói-me o peito. Não consigo respirar. Levanto os braços. Tento agarrar-me às paredes do poço seco para me levantar e caio. Agarro-me. Meto-me de pé. As minhas pernas estalam novamente e eu caio de novo no chão. Dor. Dor. Dor. Dor. E sangue a pingar. Levanto os braços. Tento gritar mas tenho um nó na garganta. Não consigo respirar. Estou muito apertado. As paredes avançam contra mim. Tento levantar-me. Caio. Tento levantar-me. Caio. Não aguento a dor. Ergo os olhos para a luz lá em cima. Não consigo. Dói-me. A luz desfoca-se. As pálpebras cerram. Paragem.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Enterro


            Tornei mais lento o passo ao passar pelos portões de ferro forjado. O peso da grande caixa de madeira, sentia-o cada vez maior, a cravar-se nos ombros, a deixar uma marca. Era então isto que se sentia nestes momentos, pensei. Soltei uma lágrima, mais uma entre as tantas que já tinha vertido desde que soubera. As árvores que ladeavam o caminho erguiam-se ao nosso lado, ferozes, pontiagudas como lanças a querer espetar o céu. Atrás de mim, de nós, e do nosso caixão vinha uma multidão preta, amorfa, chorosa, que por entre gritos lancinantes de combate, dor e piedade se acotovelavam para se manter no caminho com medo, talvez, que o manto diáfano da morte as cobrisse também se se afastassem. Avançámos lentamente, após o pregão que se fazia passar por padre naquela espécie de procissão. Chegámos ao local onde estava aberto o buraco, a ferida terrestre e terrena que engoliria de volta a madeira. O meu coração estava envolto em negro, com os tecidos a pender de cada uma das paredes, ondulando ao vento que mostrava o vazio que lá havia. Hoje separávamo-nos. E pensar que da última vez que te vira, já naquele sono que se diz repousado e eterno, estavas esculpido como em cera e olhar para ti era como olhar para mim, mas mais velho. Como se alguém tivesse posto um espelho que reflectia em três dimensões. Custava-me a acreditar que fosse naquele caixão e a claustrofobia que isso me causava atormentava-me o espírito e matava-me o pensamento. Pousou-se o caixão sobre a cova, no último meio de transporte. Abriu-se a tampa uma última vez para quem se quisesse despedir; não resisti e fui olhar-te, uma última vez, numa tentativa fracassada de colmatar a falha de não te ter olhado mais vezes, de não te ter escutado mais vezes. A tua pele estava amarelada e quebradiça como pergaminho, um tom que te dava outra idade traindo a que na verdade tinhas. As tuas olheiras cavavam-se agora ainda mais sob as órbitas mortas, que só fixavam o interior da pálpebra, em vez do infinito. Os teus lábios roxos de frio, sem circulação, mortos, e eu sabendo que nada podia fazer. Afastei-me, rapidamente. Se não me afastasse cairia, atirar-me-ia de joelhos para o chão e choraria, imploraria para que não te levassem, para que voltasses. Mas a decisão estava feita, já tinha sido tomada. E fora eu a pedir a Cloto que te desse fio de vida, e a Átropo que to cortasse…
            O caixão começou a descer para dentro da terra fresca remexida. Baque, o fundo. Era agora, o fim, a derradeira despedida. Começaram a enterrar-me. Uma a uma, as pás enchiam o pequeno grande abismo de terra, até ao cimo. Até ao cimo, sem parar. Voltei costas, andei até aos portões. O meu coração aliviou: não estava pesado nem leve. O meu passo acalmou, não estando rápido nem lento. O sol não brilhava, não chovia, mas haviam nuvens. Tudo estava cinzento, tudo estava neutro. Até as pessoas, antes de preto, agora estavam cinzentas e de rosto inexpressivo. Pus as mãos nos bolsos. Assobiei uma música sem ritmo. Nada estava bem hoje, nada estava mal. Eu não tinha feito nada; Láquesis é que decidira que eu enterraria a alma nesse dia.
           

domingo, 7 de março de 2010

Caravelas, mortas sob as estrelas...

A madeira range por baixo de mim. Não sei porque estou nesta caravela com gente a gritar e a correr e a passar por mim, para a frente e para trás, frenéticos. O vento sopra forte e enche as velas e andamos…e ainda há pouco estava eu na praia, sentado na areia quente sem desejar mais nada porque nada mais havia a desejar. Para quê abdicar do sol e do que é bom em detrimento do vazio que há em nós? Mas acabei por o fazer (nem sei se voluntariamente ou não) e, quando dei por mim, já estava com água até à cintura à espera da pequena casca de noz sobre o mar que me haveria de levar até aqui. Não sei porque me levam nem sei porque vou; chego até a perguntar-me se qualquer um destes marinheiros sabe que aqui estou. Olho para o relógio; é mais tarde do que pensava mas até se percebe, já que o sol está a raiar o céu de roxo, com os seus últimos fôlegos. Não quero ir na caravela, nem sei para onde ela vai…Não quero! Queria voltar à praia mas não posso e sei que não posso. Sei que não quero chegar ao destino. Sei que deve ir para uma outra ilha e temo que lá não haja sol, só treva eterna…não quero ir, não quero, não quero! Corro de um lado para o outro no convés, tropeçando com o abanar depois de se rasgar mais uma onda. O céu está cada vez mais preto e cada vez mais carregado, até que rebenta numa chuva de lágrimas e pingos que inunda o barco e enche mais o oceano à volta. E então, entre dois relâmpagos, lembro-me que não sei se esta caravela não é do tempo em que a terra ainda não era redonda; e com este pânico a crescer-me no peito, que se me assemelhava tão real como a hipótese de estar numa caravela, algo que de tão implausível, nunca imaginei que pudesse acontecer. Mas estava e, se estava, o barco podia cair no vazio a qualquer momento e eu ser obliterado para um vazio pior que o físico. E, com isto em mente, corro para a popa e salto sobre os castelos do homem para o colo do mar. A água salgada ensopa-me a roupa, arde-me nos olhos, gela-me os ossos; fiquei, no entanto, a saber que, pelo menos dentro de mim, não há o vazio onde a caravela se vai despenhar. O que é melhor? Trocar a comodidade de uma vida negra num vazio indescritível ou abraçar e agarrar-se com força ao temporal que o mar nos permite? Entre o fim do mundo e o limbo, escolho o limbo do mar…e tento voltar à praia com as ondas, em vez de ficar a flutuar no mar revoltado.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

NP - rasc. 01

Descíamos pela rua apertada, por entre os prédios que se erguiam de cada um dos lados, como a sufocar-nos, cortando-nos as asas, tirando-nos a visão do rio ao fundo. O dia não estava quente mas também não estava frio; estaria um agradável dia de Outono se não fosse pelo vento que soprava, forte, assobiando-nos nas esquinas. Tinhas a tua mão, presa à minha, dentro do bolso do meu casaco. Olhava para ti, de quando em vez, e sentia-me feliz. Conversávamos e eu dava por mim a encontrar respostas para as quais nunca tinha feito perguntas, a descobrir mais e mais motivos pelos quais te amava; não me cansava de estar contigo porque não havia nada melhor. Ou melhor, para mim, até àquela altura, nunca tinha existido nada melhor, o que não impedia que tal não viesse a acontecer no futuro; mas quando este pensamento me tomava a cabeça de assalto, limitava-me a abaná-la e a deixá-la escorrer-me por entre os lábios nas duas palavras que sempre pronunciava (embora agora cada vez menos): “Que parvoíce.”. Nada era difícil contigo porque não tinha que ser mais que eu mesmo; não haviam mãos à frente a esconder-nos a cara quando falávamos. E nem era difícil acreditar que me amavas também, ainda que nunca no-lo tivéssemos dito; bastava olhar-te para o brilho dos olhos castanhos e para o sorriso largo que te atravessava a cara. E não havia nada pior que as despedidas nem tempos piores que as esperas incertas. Mas estou a perder-me, a divagar, e entretanto já tínhamos chegado ao largo onde apanharias o autocarro. O vento soprava mais forte aqui; apertaste mais o casaco ao corpo e, depois de um leve beijo, foste-te embora. Nesse dia não te vi mais e estava tão cansado que, depois de entrar no metro, o meu cérebro desligou.

A luz do sol entrava-me já até meio do quarto e era hora de acordar e sair para a faculdade. Levantei-me, espreguicei-me e arrastei-me até à casa de banho para todos os afazeres matinais; quando voltei ao quarto foi só vestir uns calções, um pólo de manga curta e calçar as sapatilhas e estava pronto para sair. O pequeno-almoço, tomava-o no caminho. Desci as escadas a correr e, depois de sair à porta do prédio, deixei-me ficar por uns segundos sob o sol, a sentir o seu calor a aquecer-me o corpo. O dia estava ameno e as cerejeiras do jardim da minha rua iam largando as suas flores que, agarradas pela brisa quente, dançavam num voo até aterrarem no passeio ou na relva que as rodeava. O quanto me apetecia estar contigo deitados sobre a relva, só, sem fazer mais nada do que passar o tempo; mas a realidade era outra e eu lá tinha que ir para me meter, voluntariamente, em salas atulhadas de gente, durante todo o dia, enquanto as esplanadas nos convidavam a ficar lá fora. Mas a manhã passou e quando te vi era já hora de almoço. Estavas a duas mesas de mim na esplanada, nem muito longe nem muito perto. Parecias inatingível e cheguei mesmo a perguntar-me se não serias; mas nisto distraí-me quando uma amiga minha abriu a mala e tirou das suas profundezas algo que se revelou ser uma maçã enrolada num guardanapo. Desviei a atenção deste gesto menor e voltei a focá-la na tua mesa, onde tu estavas com ele. Num beijo que já se prolongava há algum tempo. Afastei o olhar, olhei todas as caras da minha mesa. Tanta calma e descontracção. Foquei a atenção na maçã, já desembrulhada que pousava sobre a mesa, apontei-lhe o dedo e perguntei à dona: “Posso?” e, quando ela assentiu com a cabeça, olhei-te novamente e, sem pensar duas vezes, trinquei a maçã.