"Fugimos do abismo da vida, e fugimos da vida - embora tal seja uma autentica estupidez. Se fugimos da vida, caminhamos para o abismo; se fugimos do abismo, abraçamos o calor frio da vida. E talvez porque somos humanos, voltamos novamente a perder o comboio, e novamente, e novamente - e assim continuamos, e assim caímos, e assim caem connosco. Perdemos quem amamos, perdemos quem odiamos [ódio este que somente demonstra que tais pessoas fazem parte do nosso espelho de vida].
Perdemo-nos - oh, como o comboio já lá vai!" - J. A.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Poltrona

Estou hoje sentado,
Na dor da convalescença.
Partido e escaqueirado na poltrona,
Sabendo já o que me espera:
A cor dos dias sem fim,
Entre fôlegos de azul-escuro
E de dourado,
Que escorrem, em fiapos,
Por entre os quadrados das janelas.
Dói-me o corpo,
Quebrado e quebradiço,
E a alma por ter memória;
Singram-me imagens pela cabeça,
Ecos que flutuam na sala,
Que vencem o som da voz e da televisão
E os gestos das mãos,
Feitos em vão.
Dói-me tudo, e as mãos
Largadas ao acaso sobre as calças
Ardem-me de uma dor que queima…
E antes queimasse,
Tudo à minha volta!
Mas deixo cair a cabeça para trás
E olho a janela de lado;
Afundo-me no quase-claro da sala
E descubro que, afinal,
O silêncio vazio da grande casa,
Não me faz jus à solidão.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Queria viver tudo numa noite.


Queria viver tudo numa noite.
Queria correr, saltar,
Fugir e voar,
Queria ver-te e te beijar,
Queria deslizar na neve,
E dançar e me embebedar,
Queria jantar e viajar,
E flutuar…
Queria descer um rio numa canoa,
E uma montanha escalar,
Queria mandar-me da ponte,
Com uma corda a me segurar.
Queria levar o carro e passear,
Queria pegar num martelo e partir os telemóveis;
Queria quebrar as correntes,
E mandar uma parede abaixo.
E queria patinar,
E mergulhar
E nadar,
E escrever
E tanto, tanto mais…

Queria viver tudo numa noite,
E, na manhã seguinte, tudo em mim fazer parar.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Preguiça

Tenho preguiça de estar vivo...
Preguiça, preguiça...
Iça?
Iço-me para a cama e deixo-me lá ficar,
De barriga para o ar,
Sorvendo a calma da preguiça no ar...
Tenho preguiça de viver
E de ver passar os dias
nesta lentidão de morto-vivo...
Não há altos, não há baixos,
Apenas e só a recta infinita por entre os prados...
Se preferia estar morto nestes dias
(ou não pensar, se é que isso não é a mesma coisa)
Não sei;
Não me apetecem raciocínios.
Só me apetece espreguiçar...

sábado, 10 de abril de 2010

Crac.


            Crac. Crac. Crac. Crac. O frio tinha gelado a erva que estalava enquanto se partia debaixo dos meus pés. O vento agitava violentamente as copas das árvores, que forçavam o tronco a balouçar para a frente e para trás. Pergunto-me quanto tempo aguentarão metade destas árvores, com este vento. Mas esta pergunta é parva porque não estou, de facto, interessado em saber a resposta. Crac, crac, crac, continuo a andar, com as mãos completamente perdidas nos bolsos do sobretudo preto que de nada me servia contra o frio glaciar. Não sei porque motivo me apeteceu vir andar neste dia (ultimamente nem ligo muito aos motivos; desde que deixei de ter motivo para ter motivos que me rendo facilmente ao impulso) mas neste dia esse desejo foi forte. E assim larguei o calor da lareira e me pus a andar pelo campo desolado e solitário. Crac, crac, crac. Não havia um cantar de pássaros, nem gritos ao longe. Não havia nada para além de silêncio. Crac, crac, crac, CRAAAC. Sinto algo ceder sob os meus pés. Sinto algo a ressoar. Um eco. Madeira a cair. Madeira podre a rachar completamente. Eu a cair. Eu a cair. O assobio forte aos ouvidos. A pouca luz a diminuir ainda mais. Um baque. Sinto algo quente a escorrer-me nas pernas. Dor. Dor. Dor. Dor. Dooor. Doem-me os ossos. Sinto-os partidos. Dói-me o peito. Não consigo respirar. Levanto os braços. Tento agarrar-me às paredes do poço seco para me levantar e caio. Agarro-me. Meto-me de pé. As minhas pernas estalam novamente e eu caio de novo no chão. Dor. Dor. Dor. Dor. E sangue a pingar. Levanto os braços. Tento gritar mas tenho um nó na garganta. Não consigo respirar. Estou muito apertado. As paredes avançam contra mim. Tento levantar-me. Caio. Tento levantar-me. Caio. Não aguento a dor. Ergo os olhos para a luz lá em cima. Não consigo. Dói-me. A luz desfoca-se. As pálpebras cerram. Paragem.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Enterro


            Tornei mais lento o passo ao passar pelos portões de ferro forjado. O peso da grande caixa de madeira, sentia-o cada vez maior, a cravar-se nos ombros, a deixar uma marca. Era então isto que se sentia nestes momentos, pensei. Soltei uma lágrima, mais uma entre as tantas que já tinha vertido desde que soubera. As árvores que ladeavam o caminho erguiam-se ao nosso lado, ferozes, pontiagudas como lanças a querer espetar o céu. Atrás de mim, de nós, e do nosso caixão vinha uma multidão preta, amorfa, chorosa, que por entre gritos lancinantes de combate, dor e piedade se acotovelavam para se manter no caminho com medo, talvez, que o manto diáfano da morte as cobrisse também se se afastassem. Avançámos lentamente, após o pregão que se fazia passar por padre naquela espécie de procissão. Chegámos ao local onde estava aberto o buraco, a ferida terrestre e terrena que engoliria de volta a madeira. O meu coração estava envolto em negro, com os tecidos a pender de cada uma das paredes, ondulando ao vento que mostrava o vazio que lá havia. Hoje separávamo-nos. E pensar que da última vez que te vira, já naquele sono que se diz repousado e eterno, estavas esculpido como em cera e olhar para ti era como olhar para mim, mas mais velho. Como se alguém tivesse posto um espelho que reflectia em três dimensões. Custava-me a acreditar que fosse naquele caixão e a claustrofobia que isso me causava atormentava-me o espírito e matava-me o pensamento. Pousou-se o caixão sobre a cova, no último meio de transporte. Abriu-se a tampa uma última vez para quem se quisesse despedir; não resisti e fui olhar-te, uma última vez, numa tentativa fracassada de colmatar a falha de não te ter olhado mais vezes, de não te ter escutado mais vezes. A tua pele estava amarelada e quebradiça como pergaminho, um tom que te dava outra idade traindo a que na verdade tinhas. As tuas olheiras cavavam-se agora ainda mais sob as órbitas mortas, que só fixavam o interior da pálpebra, em vez do infinito. Os teus lábios roxos de frio, sem circulação, mortos, e eu sabendo que nada podia fazer. Afastei-me, rapidamente. Se não me afastasse cairia, atirar-me-ia de joelhos para o chão e choraria, imploraria para que não te levassem, para que voltasses. Mas a decisão estava feita, já tinha sido tomada. E fora eu a pedir a Cloto que te desse fio de vida, e a Átropo que to cortasse…
            O caixão começou a descer para dentro da terra fresca remexida. Baque, o fundo. Era agora, o fim, a derradeira despedida. Começaram a enterrar-me. Uma a uma, as pás enchiam o pequeno grande abismo de terra, até ao cimo. Até ao cimo, sem parar. Voltei costas, andei até aos portões. O meu coração aliviou: não estava pesado nem leve. O meu passo acalmou, não estando rápido nem lento. O sol não brilhava, não chovia, mas haviam nuvens. Tudo estava cinzento, tudo estava neutro. Até as pessoas, antes de preto, agora estavam cinzentas e de rosto inexpressivo. Pus as mãos nos bolsos. Assobiei uma música sem ritmo. Nada estava bem hoje, nada estava mal. Eu não tinha feito nada; Láquesis é que decidira que eu enterraria a alma nesse dia.