"Fugimos do abismo da vida, e fugimos da vida - embora tal seja uma autentica estupidez. Se fugimos da vida, caminhamos para o abismo; se fugimos do abismo, abraçamos o calor frio da vida. E talvez porque somos humanos, voltamos novamente a perder o comboio, e novamente, e novamente - e assim continuamos, e assim caímos, e assim caem connosco. Perdemos quem amamos, perdemos quem odiamos [ódio este que somente demonstra que tais pessoas fazem parte do nosso espelho de vida].
Perdemo-nos - oh, como o comboio já lá vai!" - J. A.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

E receio?

Apetece-me ler,
Apetece-me escrever,
Apetece-me imenso não ter nada para fazer;
Mas não posso,
Não o faço,
Nem me poderia dar ao luxo de qualquer um querer,
Mais do que desejo passageiro,
Mais do que fome morta que escava círculos no estômago
De ser arrastada às voltas por esse salão nobre desfigurado.
Chamam-lhe temor a essa sensação e eu nunca percebi o porquê;
De que me serve ter temor
Ou medo
Ou pânico
E senti-los a corroer-me o corpo por dentro
Como se o meu corpo fosse um copo de precipitação,
Ou até um Erlenmeyer,
Donde escorria gota após gota para a dor ser maior
Ácido clorídrico nas minhas veias de sangue não-azul?
Mas tenho medo, como todos temos e tivemos e havemos de ter,
Como teve um qualquer rei de um qualquer país,
Como o teve um qualquer rei do seu nariz,
Do medo.
Tenho medo do medo,
Mas nem é o próprio medo o que me dá mais medo;
Não, mais medo que o medo em si,
Só mesmo o medo do ócio,
Porque o ócio para mim é como um aluvião de electricidade
(e os ossos dos esqueletos a dançarem violentamente contra os armários
A escangalharem-se a cada embate,
Esperando que um qualquer cangalheiro,
Possivelmente também rei do seu nariz e seu umbigo,
Os volte a encangalhar para mais uma possível dança um dia mais tarde,
Que os esqueletos nunca morrem,
Embora ardam).
Sim, temo o ócio que é o levantar dos esqueletos,
Que em formações e batalhões de pares a valsar
Se instalam nos salões mal ladrilhados da minha cabeça;
Temo essa nobreza falsa,
Composta apenas das memórias das coisas que já passaram.
Temo essa memória,
Esse ter que reviver ainda mais próximo
Que se as más memórias se vivem a meio do palco,
As que dançam valsas pela cabeça afora deslizam à boca de cena.

Daí temer o ócio;
Sem tempo livre
Ou nada para fazer,
Não teria multidões a saracotear-se na minha cabeça,
Numa dança que nem sequer sei dançar.
Sim, temo o ócio
E embora paradoxalmente o ame ao mesmo tempo,
Prefiro evitá-lo para não me perder;
Que eu não sei valsar,
E aprender com esqueletos não deverá ser a melhor ideia.

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