"Fugimos do abismo da vida, e fugimos da vida - embora tal seja uma autentica estupidez. Se fugimos da vida, caminhamos para o abismo; se fugimos do abismo, abraçamos o calor frio da vida. E talvez porque somos humanos, voltamos novamente a perder o comboio, e novamente, e novamente - e assim continuamos, e assim caímos, e assim caem connosco. Perdemos quem amamos, perdemos quem odiamos [ódio este que somente demonstra que tais pessoas fazem parte do nosso espelho de vida].
Perdemo-nos - oh, como o comboio já lá vai!" - J. A.

domingo, 14 de novembro de 2010

Bairro Alto

        A chuva cai, forte, pelo Chiado abaixo, pelo Chiado acima. Subo-o com a mesma vontade que desço as escadas ao sair de casa todos os dias e ao passar pela Brasileira, e ao acenar ao Pessoa, sinto-me num mundo estranho, adulto e adulterado e nem por isto mais ou menos esquisito. Não me reconheço na multidão de lémures até porque me não identifico com eles e o vir para aqui sozinho ao sábado à noite não foi boa ideia, de certeza. À minha volta toda a gente igual, os mesmos rostos, as mesmas roupas, as mesmas conversas processadas, já digeridas, ruminadas e cuspidas por alguém para outros as aproveitarem e todo o degredo do Bairro Alto que tanto me fascina como me repulsa. E passo por ruazinhas e travessas e vielas e o raio que o parta e a cada intersecção já sei o que esperar pois nunca muda; pessoas encostadas a paredes a sugarem as faces uns aos outros, cigarros e charros e merdas do género segurados todos da mesma forma, só porque é fixe, só porque fica bem e garrafas pelo chão e copos na mão e pessoas bêbedas e inconscientes e, muitas vezes, já inconscientes antes de bêbedas a confundir-se com o lixo e o mijo das ruas, nas ruas. O cheiro acre a ruína que se evola de cada sarjeta, de cada paralelo, de cada boca que por ali anda e o monocromatismo de um mundo multicolor de roupas e cinzento de moral. E eu pergunto-me se encaixo ali e chego à conclusão que não, que muito provavelmente não; serei eu ainda do tempo do Passeio Público ou será que esta gente é que está numa fase de Roma decadente, muito à frente num tempo que não consigo (nem quero) divisar, presos a um passado que há muito devia ter sido obliterado? Não sei. Só sei que, se eu fosse José Régio e isto fosse um Cântico Negro, terminaria este…texto? Nota? Coisa? Com um “Não sei para onde vou, sei que não vou por aí”.

1 comentário:

SusanaPacheco disse...

Muitas vezes sinto o mesmo sentimento de estranheza e de "não-pertença", ao passar por esses locais da nossa Lisboa.
Texto muito bonito, com uma bela descrição :) Parabéns!
Estou a seguir o blog ;)