"Fugimos do abismo da vida, e fugimos da vida - embora tal seja uma autentica estupidez. Se fugimos da vida, caminhamos para o abismo; se fugimos do abismo, abraçamos o calor frio da vida. E talvez porque somos humanos, voltamos novamente a perder o comboio, e novamente, e novamente - e assim continuamos, e assim caímos, e assim caem connosco. Perdemos quem amamos, perdemos quem odiamos [ódio este que somente demonstra que tais pessoas fazem parte do nosso espelho de vida].
Perdemo-nos - oh, como o comboio já lá vai!" - J. A.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Sobretudo no sofá II

Tenho calor e frio ou nem sei bem o que tenho. As costas pousadas sobre o azulejo frio faziam-me tremer mas o quente abraço do sol queimava-me a face como se de fogo se tratasse. Levanto-me, sinto-me zonzo e a minha cabeça quase rebenta, efeitos indesejáveis do álcool consumido na noite anterior, sento-me num dos bancos que rodeiam a comprida bancada marmórea e afogo a minha cabeça nas mãos, como tentando prender pensamentos. Não posso continuar assim, bêbado, só porque partiste, tenho que seguir em frente, aceitar esse facto, encarar a vida e encarar-te como um obstáculo da vida. A mim sempre me disseram que o que não me matava tornar-me-ia mais forte. Sempre concordei e agora que olho para mim, e não evito soltar uma gargalhada, não sei se esse concordar não terá sido sempre hipocrisia. Levanto-me do banco, a custo, e vou até à casa-de-banho. Apoio-me no lavatório, lavo a cara e as mãos. A cara arde-me e já nem sinto as mãos com o gelo da água, com o gelo da casa, com o gelo da tua presença fantasmagórica sobre o meu pescoço. Nota-se que é inverno, mais não seja pelo próprio frio da água corrente. Olho-me ao espelho e o que vejo? Estou magro. A minha fronte foi chupada e os meus olhos outrora vivos, irrequietos, estavam agora mortiços, como quem já desistiu de ver, um cego sonâmbulo na vida. A minha barba por fazer cobre-me já quase toda a cara sem esconder as feições e as entradas e o branco pintalgado no meu cabelo denunciam uma certa velhice que não se reflecte na idade que tenho. Estou velho e envelheço a cada dia que passa. Em breve não serei mais que uma fraca carcaça do que era, arrastando-me em silêncio pelos corredores da casa escura. Preciso de ti mais que possas pensar mas não te posso ter. Não sei onde estás e, mesmo que soubesse, não sei se quererias voltar. Desapontaste-me e não precisaste de fazer quase nada. Mas hoje, tudo vai ser diferente: hoje eu vou sair, e em vez de me voltar a encafuar no cubículo sujo e apertado a que a empresa pomposamente gosta de chamar “escritório”, vou para o parque. Talvez no som do vento nas flores e nos diamantes do lago encontre a ti…e se não te encontrar a ti ao menos que encontre a paz que preciso agora. Dispo-me e as minhas costelas vêem-se de encontro à pele nua. Todo eu tremo de frio mas ganho força e entro para o duche ainda antes de ter ligado a água. A água sai, fumegante, embaciando imediato o espelho e rapidamente me impedindo de ver tudo tão facilmente. Sinto o seu quente abraço, molho-me todo mas quando afasto a água de mim rapidamente o frio volta, cada vez mais forte, cada vez mais penetrante. Não me apresso no banho, mas apresso-me a vestir outra roupa tirada ao acaso do armário cheio de jeans e fatos, que por acaso calhou ser umas jeans e uma t-shirt, uma camisola qualquer a condizer…visto-me e voo, quase corro, para a cozinha, como qualquer bocado de carpete em sabor, vou à sala, visto o sobretudo preto e comprido e quando dou por mim já estou do lado de fora da porta, a trancá-la. Percorro o corredor, desço no elevador, saio porta fora com um aceno simpático do porteiro. O vento fustiga-me a caveira e desalinha-me os cabelos já de si desalinhados mas a mim pouco me importa, avanço para o carro e entro, deixando o frio bem trancado do lado de fora da porta. Faço o caminho para o parque mecanicamente, procuro um lugar mecanicamente, saio do carro mecanicamente e só deixo de ser autómato ao entrar às portas do jardim. As duas colunas altas que ladeavam a sua entrada conferiam-lhe um certo ar austero que em nada correspondia à realidade: lá as árvores cresciam indiscriminadamente, uma aqui e outra ali, acolá um banco no meio, várias espécies diferentes e de quando em vez lá surge um esquilo a tentar a sua sorte com a comida de alguém. Percorro a relva seca até ao lago. Está frio e vento, mas não chove e o sol aquece, ainda que pouco. Sem olhar à sujidade que iria causar no meu longo sobretudo deito-me no chão, sobre a relva fofa e verde. Fico a ver as formas brancas das nuvens no céu suspenso do tecto do mundo e fecho os olhos e vejo-te a ti. Olho para o lago todo ele diamantes com o reflexo do sol e a calma ondulação causada pelo vento e penso em ti. Talvez não devesse ter vindo já que quando aqui vinha antes era contigo e agora não há nada neste parque que não me lembre de ti e perco-me em ledos pensamentos tristes. Dos chorões que nos albergavam por baixo da sua enorme copa enquanto trocávamos beijos, do lago e das flores, do cheiro e do som da terra, dos bancos de pedra nos quais ficávamos horas, de estar deitado na relva a ver as formas das nuvens,
- Olha ali um coelho,
- Oh pois é…e a cauda parece mesmo algodão, um pompom,

e de tudo o mais, das noites em que olhávamos a lua e incontáveis estrelas e que em gestos de enorme generosidade todas te oferecia, das inúmeras noites em que te consagrava às deusas ou o que fosse, que fosse supra-natural, quase-divinização interior numa sociedade de dois indivíduos. Amava-te (amo-te?) e ainda preciso de ti, por mais que isso me doa, por mais que isso me custe. Talvez seja por isso que tenha querido vir a este parque e estar deitado aqui, neste sítio, e talvez seja por isso que ainda use o longo sobretudo preto, companheiro de todos os dias desde que partiste, que me ofereceste, agora tornado última memória apaixonada de ti, sem contar com os sussurros e os fantasmas do corredor. Volto para casa e, num quase-ritual, entro, deixo a porta aberta, atiro o sobretudo para cima da poltrona, ao acaso, e deixo-me cair no sofá convidativo, ouvindo já os teus passos suaves no corredor, ouvindo-te já um boa noite inapropriado para a hora do dia, vendo-te já morena e de cabelo comprido com os teus olhos de amêndoa e mel, e o teu sorriso ebúrneo indescritível, sentindo a tua fragrância de rosas vermelhas, escuras, como as que sempre te ofereci, sinto-te já a debruçares-te sobre a minha cara pousada numa almofada e ao tocares-me com o teu calmo expirar quente no pescoço enquanto repetes um boa noite e me beijas na face e me deixas sempre a pedir por mais. Beijamo-nos então e tento agarrar-te antes que desapareças mas quando abro os olhos já tu não estás. A tarde passa por mim antes que a sinta (nem sei se a queria sentir se a simples fuga das horas não será antes bênção divina, menos tempo para suspirar enquanto me arrasto inexoravelmente para as portas do submundo) e o crepúsculo opressivo da cidade mescla-se já com a chuva que começou a cair lá fora, algures a meio da minha cataplexia. Levanto-me a custo do sofá e avanço para a janela. Encosto a cabeça ao vidro, gelado, sinto a vibração do vento e penso em como quem olhar para dentro agora (como se alguém quisesse ou se lembrasse de olhar para a janela da nossa casa) vai achar que choro. Não choro, não. Vejo-te através do manto das estações, através deste Inverno glacial que uiva, rosna e luta, enfurecido por não conseguir entrar em minha casa. Imagino-te através do Outono, através das folhas que caem douradas, castanhas ou só amarelecidas para o chão, vejo-te através do crac-crac dos meus sapatos sobre essas folhas, vejo-te através do frio que se adivinha já e do sol que brilha cada vez mais pálido, como em leito de morte prestes a fenecer…Vejo-te e relembro-te e imagino-te e a tua face brilha como o sol radioso do Verão e os teus cabelos ainda pingam água do mar para o meu peito e venero-te a dormir à beira-mar, como dantes, e lembro-me da primavera e das suas flores que tu colhias e da tua paixão pela Edelweiss e em como, um dia, eu consegui uma e ta ofereci, assim como tentei por tempos infinitos conseguir a flor do cardo escocês, que só floresce 4 horas antes do cardo morrer e é a flor mais maravilhosa que se possa imaginar…imagino-te, e só. Partiste e eu choro agora, sim, tal como o meu vidro e o inverno infeliz lá fora. Faria tudo novamente…e se o que me pedisses fosse apenas mais uma flor, faria fosse o que fosse para te dar apenas um ramo de estrelas-de-prata, cardos escoceses e rosas, um ramo quase tão belo e imensamente menos raro dentro da unicidade do que tu.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Sobretudo no sofá I

Já um amigo meu tinha no seu blogue (porque eu fui demodé ao ponto de visitar os blogues de outras pessoas e não ter um para mim, assumindo que os blogues estão in agora) uma série de textos que, todos juntos, não contavam história nenhuma a menos que se conhecesse a história por trás dos textos. E, assim sendo, decidi fazer eu uma série de textos que contem, em si, uma história perceptível a qualquer pessoa (mas não sei se vai durar muito tempo ahah). Eis a primeira parte então. (e desde já peço desculpa por o título ser uma porcaria)


Talvez na curta viagem de elevador já me tivesse apercebido ou talvez não. Talvez a chuva que caía lá fora já mo quisesse dizer há muito mas eu nunca a tivesse querido ouvir. Talvez…nada mais que suposições. O elevador estacou e precipitei-me para fora, numa pressa que nem eu sabia explicar: talvez fosse a necessidade de materialização, talvez fosse ainda a incredulidade. Não sei, nem quero saber (será?) mas a pressa ninguém ma tira, seja qual for o tempo em que a medirem. Percorri o curto corredor a largos passos, e ainda a meio estendi a mão, na ânsia do toque frio de metal do puxador. Parei defronte da porta alta, larga e maciça e respirei fundo, como fazia todos os dias, desde há muito…desde então. Tirei a chave e meti-a na fechadura; uma volta, duas voltas, três voltas, o recolher das barras de ferro, e o clique da porta a abrir. Abri-a de par em par, num convite inexistente a alguém imaginário, e entrei, num sinal de má educação, antes de qualquer fantasma. Ignorei o hall, atirei o sobretudo longo e preto para cima do sofá e sentei-me numa poltrona. Aquele era mais um dia, mais um dos longos dias desde que me havia tornado ateu (será a palavra certa?) à força. Os teus passos ainda ecoavam no corredor, a tua voz ainda sussurrava das paredes: parecia que te tinhas ido embora apenas fisicamente e que o teu espírito ainda vagueava sem destino pela casa agora deserta. Talvez se tivesse um cão ou um qualquer outro animal o sentimento de solidão não fosse tão grande e a tensão da casa seria quebrada…mas o longo silêncio sepulcral, entrecortado apenas pelo bip irritante de um qualquer aparelho que ainda não tinha percebido qual era, era-me necessário, mais não fosse para acentuar a dor de te ter perdido enquanto deusa, enquanto musa. Sempre que chego a esta casa despida de vida e escura me lembro de ti. Talvez a solução fosse mudar mas a calma opressão das memórias que aqui me prendem acaba sempre por vencer este desejo. De cada vez que chego e que atiro o casaco para cima do sofá, como fazia quando cá estavas, tenho uma visão de ti a vir pelo corredor e a beijares-me como nunca ninguém antes, todos os dias, quando chegava, já com o anoitecer a espraiar-se sobre a cidade. Mas um dia foste. Partiste e eu nunca percebi porquê, ou nunca quis perceber o porquê. Não me explicaste o motivo, e o bilhete que deixaste na pequena mesa do hall foi insuficiente para qualquer coisa que fosse; um simples “Desculpa, mas parti. Amo-te” não é suficiente nem para matar a saudade, nem para saber como estavas, com quem foste…e as perguntas multiplicam-se na minha cabeça como as papoilas e os malmequeres num qualquer prado primaveril. Talvez seja por isso que evito o hall de entrada. Não sei, nem quero pensar nisso, mas levanto-me da poltrona e vou até à cozinha. Abro um qualquer armário, nem vale a pena dizer qual, e tiro uma garrafa de uma bebida qualquer, nem preciso de saber do quê, nem preciso de copo; mataste-me e a dor que ainda hoje me infliges é insuportável. Levo o gargalo fino à boca e bebo longos goles da bebida que me queima a garganta e põe o interior a arder: talvez seja a isto que saiba o inferno, ou talvez seja a isto que estou condenado…não consigo deixar de pensar no porquê de me teres abandonado assim, enquanto o diabo esfrega um olho, mas também não sei se quero saber a resposta e voltam os talvez. Talvez te devesse ter tomado mais atenção, talvez não devesse tomar-te como dado adquirido e a nossa relação como facto inquestionável, que nunca foi, mas tu foste-te e contigo levaste-me um pouco de alma, da pouca que já me restava, e juntaste mais uma dor a todas as que já sentia. Tornaste-me no pseudo-mártir que nunca fui e no sem-abrigo com casa que todos vêem e lamentam e de quem todos têm pena e partilham o fardo da dor mas a quem ninguém faz nada porque mais ninguém toma a iniciativa. Tornaste-me um cão vadio da sociedade, dos cães vadios aos quais ninguém deixa comida porque se assustam com eles. Tornaste-me desgrenhado e encaveiraste-me a face e tudo isto apenas com um bilhete de despedida e a tua ausência. Talvez eu seja louco (e bebo mais um pouco, e ainda não parei) ou talvez tu sejas louca: seja como for e onde estiveres, eu estou a perder e não são os teus fantasmas que me ajudam, nem a porta que ainda está aberta mas na qual ninguém entra, nem todos os amigos (ou conhecidos?) nem a família, todas as pessoas às quais não sou mais que um cometa, que surge regularmente, sem nunca trazer nada de novo a cada visita. Talvez seja isto ou talvez nada seja mas acabei a garrafa (que já ia a menos de meia quando comecei) e atirei-a pela janela, e atirei-me para o chão e quando a ouvi estilhaçar-se lá em baixo, no beco onde nunca ninguém estava, já eu estava a cair também, a pique, num sono sem descanso, num sonho-pesadelo que por mais forte que fosse o desejo nesse sentido, nunca era catártico.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Indecisões

O mal de andar muito tempo a ameaçar o início de um blogue, se principalmente for levado como ameaça vaga, é que não se sabe o que se há de pôr no dito blogue. Como eu ainda não sei e agora nem tenho tempo para pensar nisso, vou postando poemas para isto não ficar em stand-by. Logo, aqui vai mais um...

Algures, na rua, um violino toca.

Um violino geme,

E chora

E treme com o frio que faz,

Com a neve que cai.

Algures, numa qualquer casa, um piano toca.

Algures, na rua, uma mulher chora.

Uma mulher grita,

E reza,

E o seu Deus de nada lhe vale.

Algures, na rua, tu estás sentada e esperas.

Algures, nesta rua, eu ando e avanço,

Sem medo,

Liberto por fim.

Algures, nesta rua, eu estaco

E te fito com olhar esgazeado.

O violino pára.

O piano pára.

A mulher pára.

Tu paras.

O mundo pára.

E só o meu corpo não pára,

Em direcção ao chão,

Algures naquela rua,

Coroado, por fim,

Rei que nunca fui,

Pela alvura e pureza da neve que ainda cai.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Já agora...

Já agora aproveito e deixo já um poema, não vá alguém aqui vir parar...

Esta tarde vi dois apaixonados.
Não eram altos nem baixos,
Não eram gordos nem magros,
Eram dois apaixonados.
Esta tarde, numa praceta ao pé da biblioteca,
Vi um casal de namorados.
Um beijo por outro,
Um ou outro mimo,
Só um casal de namorados.
Esta tarde, a caminho de casa,
Numa praceta ensolarada e empedrada ao pé da biblioteca,
Vi amor.
Duas pessoas,
Uma só,
Pura e simplesmente amor.

Primeiro post?

Nunca comecei um blogue. Não sei fazê-lo. É uma falha grande? Nem por isso. Mas comecei-o porque me apeteceu partilhar algo com alguém. Mesmo que esse alguém não exista fica sempre o desejo de partilha e eu, pelo menos, sentir-me-ei melhor por saber que alguém pode ter visto o que aqui deixei e achado graça. Não sei. Talvez seja só parvo, mas são apenas esses que conseguem ser felizes.