"Fugimos do abismo da vida, e fugimos da vida - embora tal seja uma autentica estupidez. Se fugimos da vida, caminhamos para o abismo; se fugimos do abismo, abraçamos o calor frio da vida. E talvez porque somos humanos, voltamos novamente a perder o comboio, e novamente, e novamente - e assim continuamos, e assim caímos, e assim caem connosco. Perdemos quem amamos, perdemos quem odiamos [ódio este que somente demonstra que tais pessoas fazem parte do nosso espelho de vida].
Perdemo-nos - oh, como o comboio já lá vai!" - J. A.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Sobretudo no sofá I

Já um amigo meu tinha no seu blogue (porque eu fui demodé ao ponto de visitar os blogues de outras pessoas e não ter um para mim, assumindo que os blogues estão in agora) uma série de textos que, todos juntos, não contavam história nenhuma a menos que se conhecesse a história por trás dos textos. E, assim sendo, decidi fazer eu uma série de textos que contem, em si, uma história perceptível a qualquer pessoa (mas não sei se vai durar muito tempo ahah). Eis a primeira parte então. (e desde já peço desculpa por o título ser uma porcaria)


Talvez na curta viagem de elevador já me tivesse apercebido ou talvez não. Talvez a chuva que caía lá fora já mo quisesse dizer há muito mas eu nunca a tivesse querido ouvir. Talvez…nada mais que suposições. O elevador estacou e precipitei-me para fora, numa pressa que nem eu sabia explicar: talvez fosse a necessidade de materialização, talvez fosse ainda a incredulidade. Não sei, nem quero saber (será?) mas a pressa ninguém ma tira, seja qual for o tempo em que a medirem. Percorri o curto corredor a largos passos, e ainda a meio estendi a mão, na ânsia do toque frio de metal do puxador. Parei defronte da porta alta, larga e maciça e respirei fundo, como fazia todos os dias, desde há muito…desde então. Tirei a chave e meti-a na fechadura; uma volta, duas voltas, três voltas, o recolher das barras de ferro, e o clique da porta a abrir. Abri-a de par em par, num convite inexistente a alguém imaginário, e entrei, num sinal de má educação, antes de qualquer fantasma. Ignorei o hall, atirei o sobretudo longo e preto para cima do sofá e sentei-me numa poltrona. Aquele era mais um dia, mais um dos longos dias desde que me havia tornado ateu (será a palavra certa?) à força. Os teus passos ainda ecoavam no corredor, a tua voz ainda sussurrava das paredes: parecia que te tinhas ido embora apenas fisicamente e que o teu espírito ainda vagueava sem destino pela casa agora deserta. Talvez se tivesse um cão ou um qualquer outro animal o sentimento de solidão não fosse tão grande e a tensão da casa seria quebrada…mas o longo silêncio sepulcral, entrecortado apenas pelo bip irritante de um qualquer aparelho que ainda não tinha percebido qual era, era-me necessário, mais não fosse para acentuar a dor de te ter perdido enquanto deusa, enquanto musa. Sempre que chego a esta casa despida de vida e escura me lembro de ti. Talvez a solução fosse mudar mas a calma opressão das memórias que aqui me prendem acaba sempre por vencer este desejo. De cada vez que chego e que atiro o casaco para cima do sofá, como fazia quando cá estavas, tenho uma visão de ti a vir pelo corredor e a beijares-me como nunca ninguém antes, todos os dias, quando chegava, já com o anoitecer a espraiar-se sobre a cidade. Mas um dia foste. Partiste e eu nunca percebi porquê, ou nunca quis perceber o porquê. Não me explicaste o motivo, e o bilhete que deixaste na pequena mesa do hall foi insuficiente para qualquer coisa que fosse; um simples “Desculpa, mas parti. Amo-te” não é suficiente nem para matar a saudade, nem para saber como estavas, com quem foste…e as perguntas multiplicam-se na minha cabeça como as papoilas e os malmequeres num qualquer prado primaveril. Talvez seja por isso que evito o hall de entrada. Não sei, nem quero pensar nisso, mas levanto-me da poltrona e vou até à cozinha. Abro um qualquer armário, nem vale a pena dizer qual, e tiro uma garrafa de uma bebida qualquer, nem preciso de saber do quê, nem preciso de copo; mataste-me e a dor que ainda hoje me infliges é insuportável. Levo o gargalo fino à boca e bebo longos goles da bebida que me queima a garganta e põe o interior a arder: talvez seja a isto que saiba o inferno, ou talvez seja a isto que estou condenado…não consigo deixar de pensar no porquê de me teres abandonado assim, enquanto o diabo esfrega um olho, mas também não sei se quero saber a resposta e voltam os talvez. Talvez te devesse ter tomado mais atenção, talvez não devesse tomar-te como dado adquirido e a nossa relação como facto inquestionável, que nunca foi, mas tu foste-te e contigo levaste-me um pouco de alma, da pouca que já me restava, e juntaste mais uma dor a todas as que já sentia. Tornaste-me no pseudo-mártir que nunca fui e no sem-abrigo com casa que todos vêem e lamentam e de quem todos têm pena e partilham o fardo da dor mas a quem ninguém faz nada porque mais ninguém toma a iniciativa. Tornaste-me um cão vadio da sociedade, dos cães vadios aos quais ninguém deixa comida porque se assustam com eles. Tornaste-me desgrenhado e encaveiraste-me a face e tudo isto apenas com um bilhete de despedida e a tua ausência. Talvez eu seja louco (e bebo mais um pouco, e ainda não parei) ou talvez tu sejas louca: seja como for e onde estiveres, eu estou a perder e não são os teus fantasmas que me ajudam, nem a porta que ainda está aberta mas na qual ninguém entra, nem todos os amigos (ou conhecidos?) nem a família, todas as pessoas às quais não sou mais que um cometa, que surge regularmente, sem nunca trazer nada de novo a cada visita. Talvez seja isto ou talvez nada seja mas acabei a garrafa (que já ia a menos de meia quando comecei) e atirei-a pela janela, e atirei-me para o chão e quando a ouvi estilhaçar-se lá em baixo, no beco onde nunca ninguém estava, já eu estava a cair também, a pique, num sono sem descanso, num sonho-pesadelo que por mais forte que fosse o desejo nesse sentido, nunca era catártico.

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