"Fugimos do abismo da vida, e fugimos da vida - embora tal seja uma autentica estupidez. Se fugimos da vida, caminhamos para o abismo; se fugimos do abismo, abraçamos o calor frio da vida. E talvez porque somos humanos, voltamos novamente a perder o comboio, e novamente, e novamente - e assim continuamos, e assim caímos, e assim caem connosco. Perdemos quem amamos, perdemos quem odiamos [ódio este que somente demonstra que tais pessoas fazem parte do nosso espelho de vida].
Perdemo-nos - oh, como o comboio já lá vai!" - J. A.

domingo, 7 de março de 2010

Caravelas, mortas sob as estrelas...

A madeira range por baixo de mim. Não sei porque estou nesta caravela com gente a gritar e a correr e a passar por mim, para a frente e para trás, frenéticos. O vento sopra forte e enche as velas e andamos…e ainda há pouco estava eu na praia, sentado na areia quente sem desejar mais nada porque nada mais havia a desejar. Para quê abdicar do sol e do que é bom em detrimento do vazio que há em nós? Mas acabei por o fazer (nem sei se voluntariamente ou não) e, quando dei por mim, já estava com água até à cintura à espera da pequena casca de noz sobre o mar que me haveria de levar até aqui. Não sei porque me levam nem sei porque vou; chego até a perguntar-me se qualquer um destes marinheiros sabe que aqui estou. Olho para o relógio; é mais tarde do que pensava mas até se percebe, já que o sol está a raiar o céu de roxo, com os seus últimos fôlegos. Não quero ir na caravela, nem sei para onde ela vai…Não quero! Queria voltar à praia mas não posso e sei que não posso. Sei que não quero chegar ao destino. Sei que deve ir para uma outra ilha e temo que lá não haja sol, só treva eterna…não quero ir, não quero, não quero! Corro de um lado para o outro no convés, tropeçando com o abanar depois de se rasgar mais uma onda. O céu está cada vez mais preto e cada vez mais carregado, até que rebenta numa chuva de lágrimas e pingos que inunda o barco e enche mais o oceano à volta. E então, entre dois relâmpagos, lembro-me que não sei se esta caravela não é do tempo em que a terra ainda não era redonda; e com este pânico a crescer-me no peito, que se me assemelhava tão real como a hipótese de estar numa caravela, algo que de tão implausível, nunca imaginei que pudesse acontecer. Mas estava e, se estava, o barco podia cair no vazio a qualquer momento e eu ser obliterado para um vazio pior que o físico. E, com isto em mente, corro para a popa e salto sobre os castelos do homem para o colo do mar. A água salgada ensopa-me a roupa, arde-me nos olhos, gela-me os ossos; fiquei, no entanto, a saber que, pelo menos dentro de mim, não há o vazio onde a caravela se vai despenhar. O que é melhor? Trocar a comodidade de uma vida negra num vazio indescritível ou abraçar e agarrar-se com força ao temporal que o mar nos permite? Entre o fim do mundo e o limbo, escolho o limbo do mar…e tento voltar à praia com as ondas, em vez de ficar a flutuar no mar revoltado.

1 comentário:

Marta disse...

"We are here to make limbo tolerable" (George Clooney, in Up in the Air)

E estamos mesmo =)**