"Fugimos do abismo da vida, e fugimos da vida - embora tal seja uma autentica estupidez. Se fugimos da vida, caminhamos para o abismo; se fugimos do abismo, abraçamos o calor frio da vida. E talvez porque somos humanos, voltamos novamente a perder o comboio, e novamente, e novamente - e assim continuamos, e assim caímos, e assim caem connosco. Perdemos quem amamos, perdemos quem odiamos [ódio este que somente demonstra que tais pessoas fazem parte do nosso espelho de vida].
Perdemo-nos - oh, como o comboio já lá vai!" - J. A.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

NP - rasc. 01

Descíamos pela rua apertada, por entre os prédios que se erguiam de cada um dos lados, como a sufocar-nos, cortando-nos as asas, tirando-nos a visão do rio ao fundo. O dia não estava quente mas também não estava frio; estaria um agradável dia de Outono se não fosse pelo vento que soprava, forte, assobiando-nos nas esquinas. Tinhas a tua mão, presa à minha, dentro do bolso do meu casaco. Olhava para ti, de quando em vez, e sentia-me feliz. Conversávamos e eu dava por mim a encontrar respostas para as quais nunca tinha feito perguntas, a descobrir mais e mais motivos pelos quais te amava; não me cansava de estar contigo porque não havia nada melhor. Ou melhor, para mim, até àquela altura, nunca tinha existido nada melhor, o que não impedia que tal não viesse a acontecer no futuro; mas quando este pensamento me tomava a cabeça de assalto, limitava-me a abaná-la e a deixá-la escorrer-me por entre os lábios nas duas palavras que sempre pronunciava (embora agora cada vez menos): “Que parvoíce.”. Nada era difícil contigo porque não tinha que ser mais que eu mesmo; não haviam mãos à frente a esconder-nos a cara quando falávamos. E nem era difícil acreditar que me amavas também, ainda que nunca no-lo tivéssemos dito; bastava olhar-te para o brilho dos olhos castanhos e para o sorriso largo que te atravessava a cara. E não havia nada pior que as despedidas nem tempos piores que as esperas incertas. Mas estou a perder-me, a divagar, e entretanto já tínhamos chegado ao largo onde apanharias o autocarro. O vento soprava mais forte aqui; apertaste mais o casaco ao corpo e, depois de um leve beijo, foste-te embora. Nesse dia não te vi mais e estava tão cansado que, depois de entrar no metro, o meu cérebro desligou.

A luz do sol entrava-me já até meio do quarto e era hora de acordar e sair para a faculdade. Levantei-me, espreguicei-me e arrastei-me até à casa de banho para todos os afazeres matinais; quando voltei ao quarto foi só vestir uns calções, um pólo de manga curta e calçar as sapatilhas e estava pronto para sair. O pequeno-almoço, tomava-o no caminho. Desci as escadas a correr e, depois de sair à porta do prédio, deixei-me ficar por uns segundos sob o sol, a sentir o seu calor a aquecer-me o corpo. O dia estava ameno e as cerejeiras do jardim da minha rua iam largando as suas flores que, agarradas pela brisa quente, dançavam num voo até aterrarem no passeio ou na relva que as rodeava. O quanto me apetecia estar contigo deitados sobre a relva, só, sem fazer mais nada do que passar o tempo; mas a realidade era outra e eu lá tinha que ir para me meter, voluntariamente, em salas atulhadas de gente, durante todo o dia, enquanto as esplanadas nos convidavam a ficar lá fora. Mas a manhã passou e quando te vi era já hora de almoço. Estavas a duas mesas de mim na esplanada, nem muito longe nem muito perto. Parecias inatingível e cheguei mesmo a perguntar-me se não serias; mas nisto distraí-me quando uma amiga minha abriu a mala e tirou das suas profundezas algo que se revelou ser uma maçã enrolada num guardanapo. Desviei a atenção deste gesto menor e voltei a focá-la na tua mesa, onde tu estavas com ele. Num beijo que já se prolongava há algum tempo. Afastei o olhar, olhei todas as caras da minha mesa. Tanta calma e descontracção. Foquei a atenção na maçã, já desembrulhada que pousava sobre a mesa, apontei-lhe o dedo e perguntei à dona: “Posso?” e, quando ela assentiu com a cabeça, olhei-te novamente e, sem pensar duas vezes, trinquei a maçã.

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