"Fugimos do abismo da vida, e fugimos da vida - embora tal seja uma autentica estupidez. Se fugimos da vida, caminhamos para o abismo; se fugimos do abismo, abraçamos o calor frio da vida. E talvez porque somos humanos, voltamos novamente a perder o comboio, e novamente, e novamente - e assim continuamos, e assim caímos, e assim caem connosco. Perdemos quem amamos, perdemos quem odiamos [ódio este que somente demonstra que tais pessoas fazem parte do nosso espelho de vida].
Perdemo-nos - oh, como o comboio já lá vai!" - J. A.

domingo, 23 de maio de 2010

Prólogo

M…
As suas mãos tremiam, sustendo entre os dedos o pesado volume castanho. Uma lágrima surgia já no canto do olho e ele levantava a mão esquerda para a limpar, como sempre o tivera feito; queria varrer dele todas as emoções. Perguntava-se o porquê de só sentir dor, uma dor agonizante, uma dor que trespassava todas as suas camadas, uma dor que o penetrava até ao tutano…Uma dor. Várias dores diferentes juntas numa, supunha ele, e que era tudo o que existia no meio daquele vazio emocional. À volta não havia nada; só talvez saudade, essa última fronteira. Mas ele agarrou com mais força o álbum, respirou fundo e flectiu os joelhos; afundou-se no cadeirão de pele e pousou os braços sobre os encostos e o livro sobre as pernas. Olhou-o. Já não o via há tanto tempo, já há muito que não tinha coragem sequer para o retirar do baú que tinha trazido com ele. Não tinha pó, não estava sujo, não tinha as pontas dobradas; o nó da fita de cabedal que o prendia e o impedia de abrir ainda era o nó que ele tinha feito, há já tanto tempo…era como se o tempo nunca tivesse passado por aquele objecto. O mesmo tempo que ele a tanto custo tentara agarrar. Aproximou os dedos trémulos da lombada e percorreu-a, até chegar ao fio de cabedal; seguiu-a até ao nó. Desatou-o e puxou a fita com força, arrancando-a até ela se largar, quase a voar, da capa do álbum. Respirou fundo uma, duas, três vezes. Suspendeu a mão sobre a capa. Arqueou os dedos para agarrar a parte que sobressaía em relação ao papel. Respirou fundo. Abriu o volume. E das suas páginas sorria-lhe M.
Desta vez não tentou suster as lágrimas; deixou-as cair, uma a uma, sobre o papel, cada vez mais manchado em pequenos círculos. Ia virando as páginas do volume, num quase frenesim, até chegar ao seu fim e, assim que o fazia, voltava ao início. À medida que ia vendo uma e outra e ainda outra vez as fotografias de onde M lhe sorria, umas vezes de branco, outras nos seus vestidos de gala, umas vezes no apartamento que tinham, outras vezes nos países que visitavam, ele ia tremendo cada vez mais, agitando-se cada vez mais, chorando cada vez mais, murmurando “M”s e “não”s cada vez mais próximos uns dos outros até que parou. Simplesmente parou. Deslizou o indicador sobre a face fotografada de M, sorvendo dos recônditos da memória a lembrança desse dia tão, tão distante…Parou novamente. Olhou-a nos olhos estáticos e, ainda assim, brilhantes. Respirou fundo, limpou as lágrimas. Cerrou os punhos. Com um esticão do braço direito projectou o álbum de fotografias para longe na sala, para ao pé da porta. Levantou-se. Varreu os vasos e as molduras despidas de flores e de imagens de cima da mesinha baixa da sala até os ver partirem-se contra a parede. Pontapeou a mesa para ela se virar, pôs o cadeirão em que estava sentado de pernas para o ar. Deitou ao chão os quadros que M. tinha pintado, mandou para o lixo as fotografias que ele tirara e que pendurara num painel da sala. Foi até ao quarto e abriu o cofre; de lá tirou o contrato que rasgou raivosamente em pedaços. Correu até à varanda e entre murmúrios ininteligíveis soltou os pedaços do contrato ao vento; pousou as mãos sobre a borda da varanda. Sentia o vento passar-lhe entre os cabelos curtos, vento que também lhe levava as lágrimas para um só lado da sua cara. Olhou para o abismo que se abria para lá da protecção do muro que circundava a varanda. Baixou mais ainda a cabeça e murmurou um outro “M” e um “Talvez morrer não seja assim tão mau”.
Largou as mãos do muro.

Ergueu os calcanhares, até ficar em bicos dos pés.

Respirou fundo.

Suspirou um “Talvez não”.

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