"Fugimos do abismo da vida, e fugimos da vida - embora tal seja uma autentica estupidez. Se fugimos da vida, caminhamos para o abismo; se fugimos do abismo, abraçamos o calor frio da vida. E talvez porque somos humanos, voltamos novamente a perder o comboio, e novamente, e novamente - e assim continuamos, e assim caímos, e assim caem connosco. Perdemos quem amamos, perdemos quem odiamos [ódio este que somente demonstra que tais pessoas fazem parte do nosso espelho de vida].
Perdemo-nos - oh, como o comboio já lá vai!" - J. A.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Verão


            Desci a mão num gesto lento, suave. Fi-la passar, roçar sobre a superfície; fi-la prender e largar a areia, ainda quente, da praia. O sol já tinha começado a pôr-se e ao longe via-se a sua grande bola avermelhada raiando já o céu escuro por cima. O mar calmo em nada contrastava com o fim daquele dia; calmo, pacífico, como a fraca brisa quente que soprava. O som do mar era uma melodia extraordinária, um pano de fundo que tocava como instrumento numa orquestra; lá atrás as árvores restolhavam suavemente à brisa; lá à frente as pequenas ondas que, de tão pequenas, nem sei se se podiam chamar ondas, enrolavam-se e rebentavam num rio de espuma. Acima de nós algumas aves também se faziam ouvir e tudo aquilo, em conjunto, era suficiente para que ouvíssemos, em silêncio e paz, aquilo que a natureza nos dizia. A areia por baixo de nós ainda nos aquecia; sentia o seu calor através da minha túnica e nos pés descalços. Sentia o calor da areia na minha mão quando a deslizava sobre ela. E sentia o calor da areia a elevar-me a alma, como a companhia. Estavas sentada e olhavas o mar, com os braços a enrolar-se à volta dos joelhos. Gostava de te ver assim, com a brisa a fazer-te balançar os cabelos, alguns louros, outros quase, e a ainda luz do sol a balançar-te nos olhos, como reflexo de ti. Gostava de te olhar assim, com esse ar tranquilo e sossegado de quem sabe que os pores-do-sol, tal como os dias de verão, eram para descansar e abstrair-se da banalidade da rotina de todos os dias. Ergui a cabeça e sentei-me a teu lado. Pus o braço à volta dos teus ombros. Olhaste para mim com um olhar de quem se pergunta o que faria a seguir, com aquele brilho que se nota, naquele olhar que conseguia dizer tudo o que queria sem margem para dúvidas. Inclinei a cara e beijei-te a testa; e fiquei com o braço sobre o teu ombro a ver os últimos fôlegos do sol que caía para a noite. Não sei quanto tempo ficámos assim; não deve ter sido muito, o sol não demora muito a pôr-se. Mas a lua e as estrelas já brilhavam no céu e se reflectiam sobre o preto da minha guitarra quando comecei a tocar para ti. Músicas calmas, acordes lentos, notas soltas e dedilhados suaves que se erguiam na noite sozinhos e ecoavam, como magia, enrolando-se no marulhar do mar e no restolhar das folhas, criando uma música sempre nova, sempre diferente.
            - Está a ficar tarde e eles já se devem estar a perguntar onde andamos…é melhor irmos ter com eles para o jantar…nem sei que horas são. – disseste.
            - Tens razão, é melhor irmos é…mas não apetece nada…- e ri-me.
            Ergueste-te. Esticaste os braços e agarraste-me as mãos e começaste a puxar-me.
            - Vá, não sejas preguiçoso, anda…vá, temos de ir…
            - Hum…temos mesmo?
            - Temos, vá…
            - Pronto, vá, tens razão…Vamos lá então.
Começámos a andar pela praia em direcção ao caminho que nos levaria à casa sobre a falésia.

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